Quarta-feira, 27.06.12

 

Continuação do que aqui escrevi há dias e já foi comentado, relativamente ao novo A.O..

O texto que se segue não é da minha autoria mas de Teolinda Gersão, a escritora Portuguesa que conheceu Moçambique e de quem li, há muitos anos, “A Árvore das Palavras”, livro que me marcou e que nunca mais esqueci.

 

Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.

Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.

Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

 

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. “O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?

A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

 

João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática)

 

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Perguntar-me-ão porque é que não esqueci o livro “A Árvore das Palavras”. É simples: ensinou-me a perceber porque é que quem nasceu ou viveu em África continua com imensas saudades dos tempos felizes lá passados e que, por estranho que pareça, eram tempos de liberdade e convivência sã.

Um livro simples mas extraordinário, uma escrita sem truques mas cativante, uma óptima sugestão para ler em férias, digo eu.

 


publicado por numadeletra às 12:06 | Link do post | Comentar | Ver comentários (10) | Adicionar aos favoritos

Quarta-feira, 06.06.12
 

A Harpa de Ervas, de Truman Capote.jpg

    

“Delicioso” é o melhor adjectivo que encontro para resumir, numa só palavra, “A Harpa de Ervas”, de Truman Capote.

 

Esta narrativa de poucas páginas foi a minha estreia na literatura de Truman Capote e no novo Acordo Ortográfico.

Fiquei fã do autor e confirmei a minha relutância em relação ao Acordo Ortográfico. Mesmo assim, custou-me menos digerir este "crime" literário, do que previa antes de o experimentar... Só me apercebi que estava perante um exemplar da nova forma de escrita, depois de concluir que os tês e os pês omitidos nalgumas palavras eram gralhas em demasia para virem apenas da Editora. (Felizmente não havia "minissaias" nem “hei de” ou “hão de” nesta narrativa, caso contrário o trauma era certo).

 

Volta e meia apareciam palavras que o meu cérebro, instintivamente, identificava como sendo erros ortográficos, levando-me aos longínquos tempos da Escola Primária. Recordei os meninos da minha sala que apanhavam reguadas da Professora quase de ânimo leve, de tão habituados estarem a essa rotina e de ser também normal, para eles, receberem os seus ditados e cópias repletos de correcções a vermelho.

“20 erros e 14 faltas”, “28 erros e 9 faltas”, dizia a Senhora Professora com ar severo e em voz alta, para que toda a classe ouvisse bem.

Não sei se essas lições ficaram na memória desses meninos, mas pouco interessa para o caso. Afinal, duas ou três décadas depois, a Professora não levou a melhor...

Segundo dita o novo Acordo, muitos dos erros ortográficos da altura são agora a maneira correcta de escrever e o grupo dos bons alunos que não dava erros, terá de reaprender a escrita.

Também este texto estaria cheio de erros e teria um resultado quase igual ao dos meninos maus alunos da Escola Primária, caso fosse avaliado pelo novo Acordo Ortográfico.

Mas como, felizmente, já não tenho de passar por provas de cópias, ditados e redacções, nem o meu trabalho obriga a escrever segundo as regras deste bizarro Acordo, vou continuar a pôr em prática o que aprendi desde tenra idade. Pode parecer teimosia, mas não é. É uma questão de amor. Um grande amor pela língua materna, pelas raízes e até pela Pátria (que me perdoem os meus irmãos brasileiros).

 

Em contrapartida, na sua versão original da Língua Inglesa, ainda hoje “A Harpa de Ervas” se mantém fiel ao que, em 1951, Truman Capote escreveu. Não houve Acordos Ortográficos nem evoluções da escrita, nestes últimos 61 anos.

 

Formas de escrita aparte, gostei tanto deste livro que o li num ápice, e por pouco de uma única assentada... Só não o fiz, porque me parece que começar e acabar uma leitura no mesmo dia pode intensificá-la no momento, mas talvez a remova da lembrança mais facilmente, a médio prazo... E eu quero guardar as memórias desta história comigo o mais possível, das personagens ternurentas que a caracterizam e que fazem acreditar e relembrar que há na terra pessoas tão boas que o resto são falácias...

 

Se servir de sugestão, oxalá gostem.

 



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